sábado, 19 de março de 2011

Discurso na Colação de Grau da Turma de Pedagogia da Unicamp (Formandos 2010)

Boa noite a todos e a todas.

Ilustríssimos integrantes da mesa. Queridos familiares, convidados e formandos.

Em uma de nossas primeiras atividades na Faculdade de Educação da Unicamp no ano de 2007, fomos questionados a respeito dos motivos que nos levaram até ali. Acredito que esse momento foi extremamente constrangedor para muitos. Mesmo para mim, um dos integrantes mais velhos da turma, ainda pairavam muitas dúvidas sobre o que eu encontraria naquele lugar (renomado pela excelência de seu corpo docente). Dúvidas sobre o verdadeiro papel de um pedagogo, de um professor em nossa sociedade. Afinal, por que estávamos ali?

Evidente que nossas respostas estavam impregnadas pelo senso comum e pelas falácias criadas dentro de um sistema que luta para se manter desigual. E não pensem que é fácil se libertar das amarras de nossos preconceitos e de nossas opiniões contaminadas.

Convivemos hora com a imagem de um professor doente e silenciado, hora com a de um ser beatificado pelas agruras que “naturalmente” deveriam acompanhar a profissão, quase como uma maldição. É nessa condição, entre o fatídico e o mítico, que buscamos essa identidade imprecisa do professor, que se reinventa nos bastidores da politica liberal e que alimentamos todas as manhãs com a nossa paralisia.

Não é à toa que ainda somos chamados de tios e tias pelas crianças, como apontava (há 20 anos) o grande professor Paulo Freire. Continuamos a ser considerados meros “cuidadores de crianças”. Isso se reflete nas condições gerais de trabalho no campo da educação formal e não escolar, principalmente no majoritário emprego da desvalorizada mão de obra feminina na educação infantil (por vezes, associada à figura mítica da mãe, preparada para cuidar e educar as crianças por obra do divino).

Perante esta imprecisão, permitimos então que se estabeleça um modelo de profissional em que bastam a intenção e a boa vontade. Aliás, isso poderia, até certo ponto, explicar as razões de se acreditar, mesmo no meio acadêmico, que uma pessoa que não frequentou uma licenciatura, seja capaz de em pouquíssimo tempo, por meio de um curso à distância, se tornar preparado para a docência nessa área. Esse fato é bastante simbólico, não é verdade? Não saímos todos daqui, após 4 anos dessa rica convivência universitária, com um desejo de aprender mais? Com a impressão de que temos muito ainda a caminhar? O que dirão esses futuros docentes formados por atacado?

Não podemos nos curvar perante um modelo pernicioso de escola, em que não se busca mais apenas produzir de forma eficiente uma mão de obra barata em acordo com a demanda do mercado. Esta mentalidade “vestibulesca” e economicista que vem tomando conta das escolas, visando preparar as crianças para os chamados testes de proficiência (como o SARESP), sentencia a escola como o lugar em que decorar a fórmula é mais importante que compreendê-la. O conhecimento científico perde definitivamente sua história e seu sentido, e perde também a possibilidade de ser questionado. Ou seja, não se deseja apenas que a escola produza em escala a mão de obra barata para o mercado, mas que esses sujeitos também não questionem. Não se deseja apenas que a escola continue a reproduzir e legitimar as desigualdades em nossa sociedade, mas que seja mais eficiente em produzir disparidades.

Devemos sempre estar alertas para compreendermos até que ponto estamos compactuando com isto. Mais do que nunca, devemos lembrar que educar também é uma ação política. Não há neutralidade. O professor não é simplesmente um transmissor de conteúdos, por mais que possa tentar se restringir a isso. Mesmo quando se pressupõe imparcial, está defendendo uma concepção de escola, uma concepção de sujeito e uma concepção de sociedade.

Sabemos que, historicamente, subestimamos as crianças. Ainda não compreendemos que elas são capazes de aprender além de nossa capacidade aparente de ensinar, capazes de absorver as informações mais implícitas, assim como questionar o que para nós se tornou natural e indelével. Elas constantemente nos demonstram uma qualidade que muitas vezes perdemos durante os anos de “formatação” de nossos cérebros: a rebeldia. Aquela qualidade de resistir, de questionar. Aliás, qualidade que deveria também ser do professor, como diria Florestan Fernandes, “(...) o professor deve ser um cidadão e um ser humano rebelde”.

O conhecimento não é estático, exige rebeldia. Para que se conteste e se busque novas possibilidades. Conhecer é também permitir-se questionar. Por isso, desconfie da harmonia. A escola não deve ser harmoniosa como preconizam alguns. A escola é o lugar da inquietação, o lugar do conflito (em seu sentido de divergência e de oposição). Cabe a nós promover o diálogo e os espaços coletivos de discussão.

Nesse sentido, devemos questionar as reais intenções na disseminação de orientações pacificadoras na escola, propagadas principalmente pela mídia e por organismos internacionais como a UNESCO: “Escola da Paz”, “Cultura da Paz” etc. Somos nós que provocamos as guerras? Deseja-se produzir seres pacíficos ou passivos?

Mas voltemos à questão inicial deste discurso, do porquê de estarmos naquele lugar. Posso finalmente responder:

Estávamos naquele lugar com a paixão própria dos jovens de espírito, esperando que esse poderoso sentimento, por si só, se tornasse o combustível essencial da mudança. Trazíamos o amor incondicional daqueles que idealizam o irreal, aquele amor que padece sobre o primeiro chão de concreto. Hoje, com o espírito renovado, forjamos um amor indissolúvel, aquele que é capaz de florescer na pedra. Compreenda que “amar não é aceitar tudo. Aliás: onde tudo é aceito, desconfio que falte amor”, diria Vladimir Maiakovski.

Para concluir, desejo publicamente agradecer a todos os professores e funcionários da Faculdade de Educação da Unicamp. Agradecer aos estudantes que estão se formando, aos que já se formaram, aos que irão se formar, aos amigos da pós-graduação, às escolas que abriram suas portas para a realização de nossos estágios e principalmente às crianças que rabiscaram nossos cadernos de campo. Agradecer pela rica convivência e aprendizagem mútua. Haja hoje para tanto ontem”, dizia Paulo Leminski. Ofereço a todos vocês uma singela homenagem:

Construo um mundo de sonhos,

Que não nasceu de mim

Mas que remodelo com os materiais que encontro.

Um mundo que não é só meu,

Mas que enfeito com as cores que escolho.

Que possui a dimensão dos que me cercam,

Mas que expando sob a condição do ontem.

Na terra fértil que me ensinaram trabalhar,

Cultivo os sóis e as luas que arquiteto.

Colho borboleta em tempestade,

Semeio chuva no inverno.

Traga-me uma flor, uma simples semente que seja...

Que realizo uma violenta primavera.

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